quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Os inocentes

A série fotográfica The Innocents, de Taryn Simon, tem a sua génese num trabalho fotojornalístico que realizou em 2000, ao serviço do The New York Times Magazine. Ao fotografar homens injustamente condenados, e posteriormente ilibados enquanto aguardavam a execução da pena capital, a norte-americana começou a questionar o papel da Fotografia nos sistemas judicial e de investigação criminal dos Estados Unidos. Viajou depois pelo país, entrevistando e fotografando homens e mulheres erradamente condenados. Daí nasceu a constatação que a Fotografia se transformara em muitos casos, não num meio de obtenção da verdade, mas num instrumento espantosamente eficaz de construção de uma versão credível, mas falsa, dos factos investigados. As condenações investigadas por Taryn resultavam, não de provas materiais, mas sobretudo de identificações resultantes de um processo consistente que passava sucessivamente pelo uso de retratos robot, fotografias de cadastro e polaroids, e finalmente pelo alinhamento de suspeitos.

O peso destas identificações revelava-se esmagador em tribunal. Num sistema judicial assente na apreciação de um júri, a palavra das vítimas cilindrava os álibis dos réus, e a ausência de provas materiais acabava por não ser suficiente para criar dúvida razoável. Esta importância dada ao testemunho das vítimas assentava na convicção da inquestionabilidade da memória. Porém, como as provas de ADN mais tarde vieram a comprovar, a memória é um processo profundamente plástico. Taryn Simon verificou nos casos investigados como as identificações dos réus foram moldadas num procedimento (intencional por vezes, involuntário e inconsciente noutras) que reconstruía a memória que as testemunhas tinham dos factos.

Perante uma dificuldade de descrição, de retenção da imagem dos criminosos, as vítimas eram frequentemente confrontadas com imagens daqueles que os agentes policiais consideravam potenciais suspeitos. A pressão dos agentes, comentários ouvidos, legendas de imagens, a repetida confrontação com retratos de indivíduos alegadamente duvidosos, pormenores que faziam salientar uma das imagens (num dos casos, o condenado era o único retratado a cores num conjunto de fotografias policiais), e todo um conjunto de passos encadeados, levavam a que as testemunhas, quando chegassem à fase de reconhecimento de suspeitos num alinhamento, identificassem não exactamente quem haviam observado durante o crime, mas simplesmente quem lhes era mais familiar. Essa familiaridade com um rosto fundia-se com a memória dos factos, e em muitos dos depoentes em tribunal gerou-se uma profunda convicção que apenas a posterior utilização do ADN veio a abalar.

Na série The Innocents, Taryn Simon parte da leitura dos processos, dos perfis dos suspeitos e das entrevistas e recoloca os condenados, entretanto ilibados e soltos, em localizações que foram fulcrais na investigação criminal - o local do crime, da detenção, do álibi, da errada identificação. Recentra a questão no papel do contexto em que uma imagem fotográfica é apresentada, e na relação ambígua entre a Fotografia e a verdade.

A Fotografia tem uma relação ontológica com a realidade. Não é uma representação, é uma marca da realidade num suporte bidimensional. Daí advem a percepção de que o que é registado fotograficamente é verdadeiro. Mas, tal como acontece com factos presenciados, com a confrontação com a realidade, a percepção do que vemos numa fotografia depende fortemente da nossa experiência, dos nossos (pré)conceitos e do enquadramento momentâneo. Uma mesma fotografia assume diversos significados para diferentes pessoas, e a introdução de uma legenda altera profundamente a sua leitura. Uma encenação, uma manipulação, uma indicação transforma em prova algo que objectivamente não o é.

Em The Innocents, a chave da interpretação das imagens está contida na legenda e no facto de conhecermos o fundamento da série. Isoladas desta chave, as imagens limitam-se a apresentar personagens que nos confrontam, que nos questionam algo. Com a chave, estas imagens de ex-prisioneiros em locais de crimes onde não estiveram, em locais onde estavam de facto sem o conseguir provar, a questão última que nos apresentam é a interrogação acerca do significa realmente uma fotografia.

Taryn Simon,Charles Irvin Fain,local do crime
Rio Snake Idaho, 2002
imagem obtida aqui




Taryn Simon, Jeffrey Pierce
Lago Huron, Port Huron, Michigan, 2002
imagem obtida aqui


Taryn Simon, Larry Mayes,
Local da detenção, The Royal Inn,
Gary, Indiana, 2002
imagem obtida aqui


Taryn Simon, Troy Webb,
local do crime, The Pines,
Virginia Beach, Virginia, 2002
imagem obtida aqui





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terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Contrabando de Taryn Simon

Através do Photojournal fiquei a conhecer a série fotográfica Contraband, de 2010,  da norte-americana Taryn Simon, onde regista objectos retidos pela alfandega dos Estados Unidos, no aeroporto internacional JFK, em Nova Iorque, a sua cidade natal.
Dela conhecia a série The Innocents, mais antiga, e que partilha com Contraband a temática da relação entre a Fotografia e os processos de investigação criminal. Formalmente  simples, as imagens de Contraband apresentam toda uma panoplia de artigos apreendidos a passageiros ou retirados do interior de correspondência. Isolados, ou agrupados em conjuntos de objectos iguais ou semelhantes, foram fotografados cuidadosamente num fundo neutro claro.
Estas imagens parecem querer evitar associações, ser literais, ser de uma clareza fria e científica.
Não o podem conseguir plenamente. Observando-se muitas delas, saltam questões. O porquê de transportar gordura animal, e de tal ser ilegal. Qual a eficàcia de uma pasta de dentes feita a partir de esterco de cabra. O porquê de transportar partes de animais mortos, muitas vezes orgãos sexuais. O porquê de transportar pós não identificáveis.
Tanto quanto evidenciar actuações ilícitas, como contrafacções e tráfico de substâncias ilegais, esta série centrada nas apreensões registadas em 2009 no JFK demonstra o tremendo choque entre a cultura americana e os hábitos e crenças de muitos dos que procuram sediar-se em solo dos Estados Unidos.

Taryn Simon, Gordura, série Contraband, 2010
Imagem obtida aqui


Taryn Simon, Toucinho proveniente da Ucrânia,
série Contraband, 2010
Imagem obtida aqui





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domingo, 18 de setembro de 2011

Olha o boneco!

Entre a interessante quantidade de coisas que Félix Nadar e os seus ajudantes levaram para o subsolo parisiense nos Outonos de 1861 e 1864, e nos Invernos de 1862 e 1865, encontravam-se manequins. A razão da presença destes fracos substitutos de gente, entre os recursos técnicos que o fotógrafo fez transportar pelas catacumbas e pelos esgotos, prendia-se com o seu desejo de colmatar uma falha que detectara - em muitos dos registos fotográficos com que os exploradores novecentistas apresentavam outros espaços de espanto verificava-se a ausência de uma noção de escala.
Para os desenhadores e pintores, a resolução deste problema não oferecia grande dificuldade. Junto ao monumento e à ruína pitoresca, num recanto da paisagem desafiadora, colocava-se a representação de algo familiar, normalmente uma figura humana. Este recurso técnico esclarecia todos acerca da dimensão da coisa representada. Nadar, agente de uma disciplina nascente, a Fotografia, socorre-se do saber acumulado da Arte Ocidental e tenta reproduzir a solução nas catacumbas e nos esgotos de Paris. Contra si tem as limitações técnicas de então: emulsões pouco sensíveis e iluminação artificial muito limitada. Com exposições de dezoito minutos, está fora de questão obter um retrato de figura humana com a qualidade que o caracteriza. Mesmo com muita boa vontade e com as ferramentas de estabilização do modelo, comuns na época, objectos metálicos que constrangem os movimentos segurando o retratado pelas costas e pelo pescoço, o resultado final é necessariamente um figura tremida. A solução de nadar é fazer uso de manequins realistas, com roupas verdadeiras e em poses verosímeis. Espera assim obter uma justa representação documental dos espaços subterrâneos.
Olhando agora estas imagens, com o olhar de mais de quase duas centenas de anos de Fotografia (um olhar muito menos ingénuo que o dos contemporâneos de Nadar), o resultado distancia-se bastante dos propósitos do fotógrafo. A colocação do manequim dá às imagens um carácter de farsa, de falsificação, que corrói as suas intenções documentais. Gera um ruído que perturba a leitura, afasta as imagens do campo da representação da verdade. Embora verdadeiras imagens das catacumbas e dos esgotos, estas fotografias tendem a ser lidas muito mais como reconstituições, sejam didácticas (como as dos museus), sejam lúdicas (como as dos parques de diversões e feiras, veja-se a título de exemplo, imagens de figuras dos túneis do horror ). Enquanto documento, estes trabalhos são imensamente mais fracos que outras fotografias de Nadar, dos mesmos espaços mas sem o recurso a manequins.

Félix Nadar, Catacumbas de Paris, 1861/1862
imagem obtida aqui

Félix Nadar, Esgotos de Paris, 1864/1865
imagem obtida aqui

Radicalmente diferente nos resultados e na experiência é trabalho de Hiroshi Sugimoto, na série Portraits. Realizada nos finais da década de noventa do século passado, esta série do fotógrafo japonês parte da possibilidade de fotografar a figura de cera de Henrique VIII de Inglaterra, criada pelos artesão do Museu de cera da Madame Tussaud, em Londres. Trabalhada com enorme profundidade e detalhe a partir das pinturas de Hans Holbein, o Novo, a escultura traz-nos com realismo o polémico rei. E permitiu a Sugimoto iniciar uma série em que trabalha alguns dos seus temas de eleição - a natureza da Fotografia e os seus limites, a realidade e a sua percepção, a apreensão dos conceitos de vivo e morto. Partindo de Henrique VIII, utilizando técnicas de iluminação que reproduzem a luz com que Hans Holbein terá trabalhado, fotografou outras figuras do passado anterior à Fotografia, recuperadas da pintura europeia pelos artesãos do Madame Tussaud, e por fim, as estátuas de cera de personalidades contemporâneas de Sugimoto, como Fidel Castro e o imperador Hirohito.
O resultado é perturbador. Trabalhando com o mesmo material de Nadar, simulacros da figura humana, o produto e os objectivos são diametralmente opostos. Ao passo que nadar pretendia fornecer uma melhor percepção da realidade que assistia, Sugimoto parece querer confrontar-nos com a nossa propensão para sermos iludidos, mesmo sabendo da impossibilidade do que nos é oferecido à vista. Vemos Henrique VIII fotografado, sabemo-lo morto muito antes do tempo da Fotografia, mas tendemos a vê-lo como verdadeiro. Oscila-se entre a percepção de um retrato fotográfico verdadeiro e a percepção de uma reprodução preto e branco de uma pintura (talvez por isso as imagens das estátuas de figuras históricas sejam as mais fortes da série). Ao contrário das imagens dos esgotos e das catacumbas, que apesar de verdadeiras nos soam falsas de imediato, os retratos de Sugimoto, apesar de os sabermos improváveis, parecem-nos verdadeiros.

Hiroshi Sugimoto, Henrique VIII,
série Portraits, 1999
imagem obtida aqui
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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Uma outra cidade

Paris tem uma notável relação com a Fotografia, começando pelo cognome de cidade luz. Este terá começado por ser uma associação figurativa (a capital francesa era o centro da revolução cultural do Iluminismo) no séc. XVIII, e que terá passado a uma asserção literal quando foi aí instalada a primeira grande rede de iluminação pública a gás. Há que ter depois em conta o facto de nela se terem passado alguns dos episódios mais marcantes da invenção do processo fotográfico, estando sediados aí (ou ao seu redor) alguns dos pioneiros mais marcantes, como Louis-Jacques Mandé Daguerre, Hippolyte Bayard e Abel Niepce de Saint-Victor. Por último, muitas são as imagens de Paris que entraram no imaginário popular por via fotográfica, cujo exemplo máximo será talvez “Le baiser de l'hôtel de ville” de Robert Doisneau, imagem de 1950 em que um casal se beija numa larga e movimentada via parisiense.
Porém, a Paris dos pioneiros da Fotografia era uma cidade bastante diferente daquela que temos em mente hoje. As ruas que Daguerre e Bayard percorriam enquanto matutavam nos sais de prata, eram as de uma pólis de raiz medieval que até ao século doze se fora improvisando e construindo, consumindo a pedra das construções da cidade romana que a precedeu. E que partir de então se continuará a expandir, movida sobretudo por inércia e não tanto por planos, e de uma forma estranhamente autofágica. Esgotada a fonte das construções romanas, os parisienses escavam as entranhas da cidade, em pedreiras subterrâneas que alimentarão com gesso e calcário, durante séculos, o fulgor construtivo da capital francesa. Sem controlo e sem projecto, as galerias alastram-se por quilómetros, criando uma verdadeira cidade debaixo da cidade.
Nem sempre seguros, nem sempre cuidados, os subterrâneos revelaram-se por vezes uma fonte de catástrofe. Pequenos desabamentos prenunciaram o enorme colapso de 27 de Julho de 1778, em a rua Boyer foi engolida pelo próprio solo. Perante o sucedido, Luís XVI (exacto, o que mais tarde perderá a cabeça na guilhotina) ordena a criação do corpo de inspectores das pedreiras liderado pelo arquitecto do rei, Charles Axel Guillaumot. É iniciado então um trabalho gigantesco, que incluirá a inspecção, inventariação e cartografia das galerias, o escoramento das instáveis pedreiras e a criação de acessos adicionais para facilitar as vistorias e a conservação. Para facilitar a orientação, Guillaumot ordena a identificação das galerias e túneis mandando gravar nos seus extremos o nome da rua correspondente no plano superior.
A Paris subterrânea torna-se um espelho viário da paris das Luzes. E será assim até que, aquando da instauração do Segundo Império, se reunem as condições políticas e as ambições do rei e do prefeito do Sena, o Barão Georges-Eugène Haussmann, que levarão a cabo o que por várias vezes havia sido antes defendido – a construção de uma nova Paris. A velha Paris, de ruas caóticas e estreitas, insalubre, não era aceitável para os que defendiam que a capital deveria reflectir no seu traçado e construção a racionalidade da Modernidade. Pesou também a velha rivalidade com os ingleses, que por essa altura já haviam dotado Londres de um conjunto de Parques Públicos e de um amplo sistema de esgotos. Assim, de 1853 em diante iniciar-se-á a destruição e o renascimento da capital, trabalho que verdadeiramente só será concluído no final desse século, bem depois do estertor do segundo Império e do afastamento do barão.
Na década de 60 de oitocentos, quando os trabalhos estavam verdadeiramente a começar, foi contratado o fotógrafo Charles Marville para registar, para memória futura, a Paris em vias de desaparecer. Charles Marville, pseudónimo de Charles François Bossu, um pintor, gravador e ilustrador nascido em 1813, que mudara de mister aquando do aparecimento da fotografia, havia-se destacado da grande quantidade de fotógrafos da época ao se ter especializado na fotografia de obras de Arte e de Arquitectura, primeiro utilizando a técnica de negativos em papel salgado, depois chapas de vidro com colódio húmido.
Em 1858, inicia uma ligação formal com o município de Paris, fotografando o Bois de Boulogne, o recentemente renovado parque real, que se tornara um dos locais preferidos da burguesia parisiense. Este trabalho é, na prática, o início da enorme série de fotografias relacionada com a renovação da cidade, e como vimos, durante a década seguinte realizará cerca de 400 fotografias das ruas e becos que serão arrasados pela programada acção de Haussmann (que aliás lhe encomendará igualmente o retrato da nova cidade, numa outra sequência de imagens, que incluirão desde as novas igrejas e avenidas aos pitorescos urinóis).
O fotógrafo oficial de Paris fará assim uma abrangente recolha visual da Paris mutante do segundo império, mas o que mais nos impressiona é o corpo de imagens da cidade condenada. A ele devemos a fonte que permite as reconstruções cinematográficas realistas da cidade, em séries ou filmes. Graças a ele podemos, com propriedade, imaginar as ruas de Les misérables, de Vitor Hugo, onde Jean Valjean deambula ( no meu caso, por falta de imaginação, valjean parece-se sempre com Gérard Depardieu).

Charles Marville, paris; 1860/1870
Prova de albumina
imagem obtida aqui

Charles Marville,
Beco junto ao Mercado dos cavalos,Paris, 1860/1870
Prova de albumina
imagem obtida aqui

Uma das inesperadas consequências da renovação de Paris foi a de refocar a atenção dos parisienses, pelo menos de alguns, na cidade do Subsolo. Estranhamente para nós, criaturas do conforto e da higiene, a rede de esgotos criada então era para muitos dos burgueses citadinos uma atracção a visitar. Uma outra secção da Paris subterrânea ganha então renovada atenção, as catacumbas. No último quartel do séc. XVIII, tornou-se inadiável e imperativo resolver a situação dos sobrelotados cemitérios parisienses, que se tornavam um sério problema de saúde pública, tal era a quantidade de matéria em decomposição. Inseridos maioritariamente no espaço de igrejas, revelavam-se impossíveis de ampliar e impróprios de uma metrópole que crescia incessantemente. É decidida a criação de três enormes cemitérios nos arredores, e eliminação das pequenas necrópoles citadinas. Uma vez tomada a decisão, impõe-se decidir o que fazer dos restos mortais nelas existentes. Alexandre Lenoir, responsável policial parisiense, pensa nas pedreiras. Será o seu sucessor, Thiroux de Crosne, quem escolherá o local exacto e quem porá em acção o plano de transladação em 1786, com o apoio do corpo de inspectores das pedreiras. Até 1810, as pedreiras e galerias serão usadas como mero depósito até que Louis-Étienne Héricart de Thury, o sucessor de Guillaumot na chefia dos inspectores, decide dar maior dignidade à tarefa e tornar visitáveis os ossários. Inicia-se então a actual disposição das catacumbas, com as ossadas compostas e guarnecidas com as pedras das campas que foi possível recuperar.


Em 1861, Gaspard-Felix Tournachon, mais conhecido pelo seu pseudónimo Félix Nadar, visita os novos esgotos e decide, num impulso sem grande interesse comercial, fotografar o que solo de Paris escondia. Este arrojo era um óbvio desafio, dada a infância da técnica. Apesar de usar a técnica do colódio seco, mais propícia a aventuras no exterior, arrastar o equipamento e fazer imagens dos subterrâneos era estava que estava longe de ser fácil. E a menor das dificuldades não era, sem dúvida, a falta de Luz. Encontra-se, por vezes, a informação de que para resolver esta questão, Nadar terá sido um dos pioneiros do uso da ignição combinada de magnésio e cloreto de potássio, antepassada dos flashes actuais, para produzir os clarões necessários à iluminação destes motivos. Mas tal não foi, de facto, a sua solução. Homem habituado a pensar em termos de iluminação no seu estúdio especialmente construído com grandes vidraças, a sua resposta foi mais complicada de transportar e de usar. Mas permitiu um outro tipo de abordagem, com exposições mais longas e controladas. O fotógrafo fez-se acompanhar de bastantes ajudantes, e carregou-os com cabos e baterias, e com a rudimentar iluminação eléctrica da época anterior a Edison. Fotografou assim o grosso das suas imagens subterrâneas, dispondo iluminação a gosto e usando exposições, por vezes, a rondar os vinte minutos. A reportagem de exterior de Nadar era um laborioso trabalho de estúdio.
Ao eventual propósito inicial de retratar a maravilha técnica que eram os novos esgotos, Nadar sobrepõe depois o ensejo de registar uma secção mais antiga do subsolo, precisamente a parte das galerias e pedreiras que recebera os mais de sete milhões de esqueletos dos ancestrais cemitérios parisienses. Será aí que, no Outono de 1861 e no Inverno de 1862, fará a maior parte das mais de cem fotografias subterrâneas que realizou. As suas motivações e a sua insistência não particularmente claras. Ao contrário de muitos fotógrafos seus contemporâneos, realizou muito poucos retratos em leito de morte, e nas suas memórias “Quand j'étais photographe”, de 1900, afirmou que as catacumbas enquanto motivo eram algo monótonas, o seu pitoresco esgotava-se rapidamente. O apelo dos ossários é eminentemente literário e não tanto visual, e o desafio do fotógrafo, induz-nos Nadar, é sobretudo técnico. Mas não nos esclarece acerca da predominância quantitativa das imagens das catacumbas em relação às dos esgotos, menos de três dezenas e mais tardias (datam de 1864 e 1865).

Félix Nadar, Catacumbas, Paris, 1861-1862
imagem obtida aqui


Félix Nadar, Catacumbas, Paris, 1861-1862
imagem obtida aqui
Félix Nadar, Esgotos, Paris, 1864-1865
imagem obtida aqui


Nadar parece aqui funcionar como exemplo da estranha dualidade do séc. XIX. A par de um enorme interesse na técnica, na era da Máquina, o espírito novecentista procura um contraponto na idealização da Natureza, da História e do misterioso. O fotógrafo parisiense, intimo das elites progressistas, agente do desenvolvimento da técnica fotográfica, ao se dirigir para o subsolo, prefere lutar com impossibilidade de retratar o enigma da morte a fazer um hino fotográfico ao progresso da higiene urbana. Aos esgotos de Haussmann prefere a Paris subterrânea antiga, espelho de uma cidade que morria na superfície à mercê do Progresso.
Charles Marville e Félix Nadar, trabalhando na mesma década, deixam-nos um retrato particular da capital parisiense num momento decisivo. Marville captura o estertor das ruas e becos condenados e Nadar leva-nos para as trevas da cidade que perdurará com a configuração e os nomes das ruas pré-Haussmann. Deixam-nos um retrato de paris, mas neste esta é uma outra cidade.
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